Em um mundo cada vez mais consumista, em que se paga por tudo (os mais novos talvez não saibam, mas, há 30 anos, nenhum shopping center cobrava pelo estacionamento, entre tantos outros exemplos de serviços pelos quais pagamos hoje que sequer existiam no passado), nos desvincularmos da ideia de que tudo se transforma em mercadoria pode ser um desafio. A cultura da venda de animais domésticos já está muito arraigada, sendo muito comum e natural que uma pessoa que queira adquirir um pet pense inicialmente em comprá-lo.
Combater esta ideia é justamente a luta dos gateiros, tutores e ONGs que buscam a defesa dos animais, defendendo a adoção dos gatos em contraposição à venda indiscriminada desses e outros animais domésticos, muitas vezes mantidos em más condições nos recintos de venda.
Inclusive, há no Estado de São Paulo um projeto de lei (PL nº 523/2023), de autoria do deputado Rafael Saraiva (União) que “Proíbe a criação e revenda de animais em “Pet Shops” e estabelecimentos comerciais e cria o Cadastro Estadual do Criador de Animais – CECA no Estado”.
Nas justificativas para a propositura deste PL, o legislador estadual informa que nas Pet Shops e demais estabelecimentos comerciais os animais ficam expostos ao público por longas horas em recintos de venda inadequados, prejudicando sua saúde, bem-estar, e, consequentemente, lhes ocasionando estresse e trauma.
Ademais, ressalta que os filhotes ficam expostos a doenças e infecções para as quais ainda não foram vacinados.
Aquele legislador estadual ainda informa que as Pet Shops são incentivadoras de práticas ilegais, já que costumam adquirir os pets de criadouros ilegais, os quais, obviamente, não promovem o bem-estar dos animais, tratando-os como meras fontes de renda. Neste sentido, relata que as fêmeas são colocadas para procriar mais de uma vez ao ano nestes criadouros ilegais, chamados, por tal motivo, de “fábricas de animais”, em franco desrespeito às disposições legais que prezam pela saúde e bem-estar do animal.
Enquanto a legislação caminha para garantir a saúde e o bem-estar dos animais, os gateiros fazem questão de apenas adotar os bichanos, se recusando a comprá-los como se mercadoria fossem. Além de serem defensores dos direitos destes queridos animais, os gateiros também possuem grande preocupação com o meio ambiente, afinal, os gatos pertencem à fauna natural do planeta.
Neste artigo iremos abordar as principais normas e tendências legislativas, além de destacarmos os direitos e deveres de tutores e criadores de gatos.
A Importância da Adoção de Gatos Abandonados
A adoção não estimula um mercado de venda que, conforme exposto, além de, frequentemente, não possuírem um recinto adequado para a exposição dos animais, os adquire de criadouros ilegais.
Adotar um animal abandonado constitui um ato que traz benefícios não apenas ao próprio animal, como também aos seres humanos e ao planeta.
Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), em 2022 havia 30 milhões de animais abandonados no Brasil, sendo 10 milhões de gatos e 20 milhões de cães (fonte: https://noticias.unb.br/artigos-main/6573-abandono-de-animais-e-crime#:~:text=De%20acordo%20com%20a%20Organiza%C3%A7%C3%A3o,gatos%20e%2020%20milh%C3%B5es%2C%20c%C3%A3es.)
O artigo supracitado, publicado pela Universidade Nacional de Brasília – UNB – explica muito bem quais são as consequências físicas, psicológicas e biológicas causadas pelo abandono, cite-se:
“(…) Ao ser abandonado o animal entra em sofrimento psicológico e físico, por não ter a capacidade de encontrar comida, água e abrigo. (…)
O abandono de um animal pode provocar desequilíbrio ecológico por realizar a predação ou ser vetor para doenças aos animais silvestres, o que é exacerbado pela reprodução descontrolada e aumento da população desses animais na rua. Ao não ter as necessidades básicas supridas, ele fica predisposto a adquirir doenças, inclusive algumas zoonoses”.
(grifo nosso)
Conforme bem comenta o artigo publicado pela UNB, vale reforçar que um animal abandonado poderá: a) causar desequilíbrio ecológico e; b) adquirir doenças e transmiti-las tanto a outros animais (inclusive silvestres) como também aos humanos (é o caso, por exemplo, da raiva, doença que é responsável pela morte de muitos seres humanos, que a contrai, principalmente, de cães contaminados).
Ademais, animais abandonados sofrem enorme preconceito, já que não possuem “pedigree”. Os chamados vira-latas, por exemplo, expressam nada menos do que um enorme preconceito quanto à sua raça e origem. Eles possuem os mesmos direitos que quaisquer outros animais. O combate a este preconceito também é tarefa hercúlea travada por gateiros e tutores em geral.
Não restam dúvidas de que a adoção traz diversos benefícios, mas ela deve ser um ato responsável, devendo o tutor saber dos direitos de seus animais, e dos deveres que deverá cumprir ao adotá-los.
A OIE – Organização Mundial de Saúde Animal – lista as 5 liberdades dos animais, que são não apenas reconhecidas internacionalmente como orientam legisladores do tema mundo afora. A seguir listamos tais liberdades e citamos as explicações sobre cada uma, retiradas de um artigo publicado pela Certified Humane Brasil:
1. Estar livre de fome e sede: os animais devem ter acesso a água e alimento adequados para manter sua saúde e vigor
2. Estar livre de desconforto: o ambiente em que os animais vivem deve ser adequado a cada espécie, com condições de abrigo e descanso adequados.
3. Estar livre de dor, doença e injúria: os responsáveis pela criação devem garantir prevenção, rápido diagnóstico e tratamento adequado aos animais.
4. Ter liberdade para expressar os comportamentos naturais da espécie: os animais devem ter a liberdade para se comportar naturalmente, o que exige espaço suficiente, instalações adequadas e a companhia da sua própria espécie.
5. Estar livre de medo e de estresse: os animais não devem ser submetidos a condições que os levem ao sofrimento mental, para que não fiquem assustados ou estressados, por exemplo.
(Fonte: https://certifiedhumanebrasil.org/conheca-as-cinco-liberdades-dos-animais/?utm_source=google&utm_medium=cpc&utm_campaign=cinco-liberdades-dos-animais&gad_source=1&gclid=EAIaIQobChMIvJewm5T7ggMVL1RIAB1big-2EAAYASAAEgLd_PD_BwE)
Portanto, estas cinco liberdades são os princípios internacionais que norteiam as condições que devem ser atendidas para que se garanta o bem-estar dos animais.
Aqui acrescentamos ainda uma condição, qual seja: a de que os animais sempre possuam a companhia de seu tutor, o qual lhe deverá dar carinho e atenção. Infelizmente, é muito comum nos deparamos com pessoas que compram um pet e o abandonam por longos períodos sozinhos, muitas vezes sem comida e água suficientes.
Neste artigo ainda iremos tratar de outros deveres e direitos de gateiros/tutores e gatos.
O que são gatos comunitários?
Entre os gatos de rua, há aqueles que são chamados de “comunitários”, expressão que consta, inclusive, na legislação que versa sobre a proteção a estes animais. Neste sentido:
“Entende-se por cão ou gato comunitário aquele que, apesar de não ter responsável definido e único, estabelece com a comunidade onde vive vínculos de dependência e manutenção”.
Este é o conceito definido no parágrafo único do artigo 6º da Lei estadual (MG) 21.970/16, que “Dispõe sobre a proteção, a identificação e o controle populacional de cães e gatos”.
Embora sejam animais de rua, os gatos comunitários estabelecem um vínculo com a comunidade. Logo, embora não possuam um responsável ou tutor específico, recebem cuidados de vários membros da comunidade.
É interessante ressaltar que esta lei mineira estabelece o direito de que tanto gatos (e cães) de rua como comunitários sejam alimentados de forma adequada por qualquer cidadão.
Neste sentido, o artigo 6-A desta lei estabelece que “É assegurado a qualquer cidadão o direito de fornecer, nos espaços públicos, na forma e na quantidade adequadas ao bem-estar animal, alimento e água aos animais em situação de rua, inclusive aos cães e gatos comunitários”.
Portanto, é permitido que qualquer pessoa alimente e dê água a animais comunitários, em um espaço público (ruas, praças etc. onde aquele animal vive) desde que obviamente, se trate de uma alimentação adequada à sua saúde.
O papel das ONGs e Cuidadores
Segundo Lei estadual (MG) nº 21.970/16, os animais comunitários que vierem a ser recolhidos pelo Poder Público deverão ser castrados e devolvidos à comunidade.
Quando o animal possui um responsável, este último poderá resgatá-lo no prazo de 3 dias úteis após o recolhimento pelo Poder Público, exceto no caso em que se contata que o animal sofreu maus tratos, situação em que o responsável é impedido de resgatá-lo. E, não havendo resgate dentro do referido prazo, o animal será esterilizado, identificado e disponibilizado para adoção.
Mas, como os animais comunitários não possuem um responsável, e ainda, considerando que eles possuem verdadeiro vínculo com pessoas da comunidade, a lei estabelece que, após castrados, serão devolvidos a esta última; ou seja, tendo em vista que a própria comunidade é a responsável por cuidar daqueles animais, a lei permite que sejam devolvidos a ela.
E, reconhecendo o papel importante que cumprem as ONGs, os cuidadores e os protetores de animais, esta lei determina que o Estado (ou seja, o Poder Público), “poderá conceder, aos cuidadores e protetores de animais cadastrados na forma de regulamento, preferência em programas públicos de castração, vacinação e atendimento de animais”.
Para deixar esta obrigação mais clara, esta lei fornece o seguinte conceito:
“Para fins do disposto nesta lei, consideram-se cuidadores e protetores de animais as pessoas físicas residentes no Estado e as organizações do terceiro setor que, de forma frequente e não remunerada, cuidem de animais comunitários e os alimentem, ou que acolham animais de forma definitiva ou para intermediar adoção, recolhendo-os das ruas e providenciando os cuidados necessários a seu bem-estar” (parágrafo único do artigo 8-A).
Portanto, uma ONG, ou ainda, qualquer cidadão, que cuide de animais comunitários terá preferência em atendimentos promovidos por programas públicos que tenham como objetivo castrar, vacinar e atender estes animais.
É com alegria que observamos um claro e concreto incentivo do Poder Público às ONGs e pessoas que cuidam e protegem animais comunitários. Esperamos que outras normas brasileiras sigam esta mesma linha.
Animais não são coisa, mas sim, seres Sencientes!
Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei (PL 27/18), de autoria do Deputado Federal Ricardo Izar (PSD/SP) que tem como objetivo alterar a Lei de Crimes Ambientais (Lei federal nº 9.605/98) a fim de determinar que “os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos de direitos despersonificados, dos quais devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa”.
O motivo pelo qual este PL veda o tratamento dos animais como coisa é o fato de que é justamente assim que a atual legislação federal ainda os considera.
Logo, observa-se que a alteração proposta por este PL é de extrema relevância, pois, atualmente, os animais não são tratados pela legislação federal sequer como seres vivos. São equiparados às coisas, aos chamados “bens móveis”, tais como os carros, celulares, e até mesmo objetos como uma cadeira, um vaso, conforme ainda determina o artigo 82 do Código Civil Brasileiro, segundo o qual “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.”.
É neste artigo que os animais, sejam domésticos ou silvestres, se enquadram. Segundo os estudiosos do Direito, este último artigo do Código Civil refere-se aos chamados “bens móveis por natureza”, os quais, conforme indica o próprio texto da norma, se subdividem em duas categorias, quais sejam: a) os bens semoventes, que “se movem por força própria”, como os animais; e os bens móveis propriamente ditos, que se movem através de uma “força alheia”, como um carro, uma cadeira, um vaso etc.
Verifica-se, portanto, que os animais são uma categoria dos chamados bens móveis, o que demonstra o seu tratamento como coisa.
Visando a alterar este tratamento dado aos animais, o PL 27/18 estabelece expressamente que o artigo 82 do Código Civil “não se aplica aos animais não humanos, que ficam sujeitos a direitos despersonificados”. Desta forma, apenas quando este projeto de lei finalmente vier a tornar-se uma lei federal, os animais deixarão de ser equiparados, no âmbito da legislação federal, aos bens materiais, ou seja, às coisas e objetos.
O referido projeto de lei ainda determina que “os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos de direitos despersonificados, dos quais devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação”, o que significa que seus tutores podem pedir à justiça uma resposta ao direito então violado.
Quais seriam esses direitos? Embora o PL não os liste, podemos dizer que seriam basicamente aqueles abrangidos pelas cinco liberdades dos animais, já comentadas neste artigo.
Ademais, o Código Civil, que, como se observa, é hoje considerado atrasado e já superado, ainda se refere aos proprietários de animais como “donos”, expressão que também é usada para nos referirmos às coisas e bens materiais. Esta norma federal, portanto, ainda prevê em seu artigo 936 que “O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”.
Um importante avanço do PL acima comentado, a nosso ver, é reconhecer, expressamente que que “os animais não humanos possuem natureza biológica e emocional e são seres sencientes, passíveis de sofrimento”.
Neste sentido, esclarecemos que o entendimento majoritário atual é no sentido de que os animais são seres sencientes, ou seja, dotados de emoções e sentimentos, tais como frio, calor, fome, sede, ansiedade, sofrimento, tristeza, medo, estresse, os quais, inclusive, “podem causar alterações comportamentais e clínicas” nos animais, conforme nos ensina o médico veterinário do Núcleo de Fauna e Pesca (Nufap) da Semad (Secretaria Estadual do Meio Ambiente de Desenvolvimento Sustentável Do Estado de Minas Gerais), José Begalli (disponível em http://www.meioambiente.mg.gov.br/noticias/4523-estado-publica-lei-que-aumenta-protecao-animal-em-minas-gerais#:~:text=O%20governador%20de%20Minas%20Gerais,qualidade%20de%20vida%20e%20dignidade.)
Tendo em vista a nova abordagem deste tema, atualmente, não mais se fala em “donos”, mas sim, em tutores. E, também associada a esta concepção, considera-se como sendo a prática ideal que os animais não sejam vendidos, mas sim adotados por seus tutores. Novamente, o comércio de um animal pressupõe o seu tratamento como mera mercadoria ou um bem que pode ser livremente vendido, o que despreza a ideia de que são seres vivos e sensíveis.
Uma evolução legislativa ainda mais disruptiva seria, a nosso ver, que a venda de animais seja simplesmente proibida. A partir de então seria obrigatório que eles apenas possam ser doados e adotados.
Enquanto isso não ocorre, vale destacar que o Estado de Minas Gerais já agiu de forma mais célere que o legislador federal e publicou, ainda em 2020, a Lei estadual 23.724, a qual “Acrescenta parágrafo ao art. 1º da Lei nº 22.231, de 20 de julho de 2016, que dispõe sobre a definição de maus-tratos contra animais no Estado e dá outras providências”.
O parágrafo então acrescentado pela Lei 23.724/20 ao artigo 1º da Lei 22.231/16 estabeleceu que:
Para os fins desta lei, os animais são reconhecidos como seres sencientes, sujeitos de direito despersonificados, fazendo jus a tutela jurisdicional em caso de violação de seus direitos, ressalvadas as exceções previstas na legislação específica.”
Observa-se que texto é praticamente o mesmo previsto no PL que tramita no Congresso Nacional. E esta é uma tendência legislativa, ou seja, muito provavelmente, as normas estaduais que ainda serão publicadas nos demais Estados brasileiros seguirão a mesma linha e os mesmos conceitos previstos na legislação federal quando esta última finalmente vier a ser publicada.
Cumpre melhor explicar que, desde 2016, o Estado de Minas Gerais já possui uma lei que regulamenta as infrações relacionadas aos maus tratos de animais (Lei nº 22.231/16).
Conforme exporemos, a Lei nº 22.231/16 lista quais são as condutas que configuram maus tratos, estabelecendo diferentes valores de multa, conforme a gravidade da conduta praticada contra o animal.
A publicação desta lei estadual já configurou um importante passo para que quem vir a cometer maus tratos seja efetivamente punido.
E, conforme exposto, após quatro anos, esta mesma lei foi alterada pela Lei 23.724/20, a qual, no mesmo sentido do PL que tramita no congresso nacional, passou a reconhecer os animais como seres sencientes, determinando que eles são sujeitos de direito, e lhes conferindo o direito à tutela jurisdicional caso seus direitos sejam violados.
A seguir, detalharemos melhor o conteúdo da Lei 22.231/16, a qual trouxe importantes e inovadoras definições ao conceito de “maus tratos”.
Maus tratos a animais é crime! Mas, afinal, o que são maus tratos?
As condutas que configuram mais tratos vão muito além da violência física, da falta de alimentação e condição precária de moradia.
Em âmbito federal, a legislação não detalha quais são as inúmeras formas de maus tratos, função que ficou a cargo das normas estaduais e municipais.
No Estado de Minas Gerais, a Lei nº 22.231/16 determina que são considerados maus tratos “quaisquer ações ou omissões que atentem contra a saúde ou a integridade física ou mental de animal”, listando algumas condutas específicas que se enquadram neste conceito, quais sejam:
● Privar o animal das suas necessidades básicas;
● Lesar ou agredir o animal, causando-lhe sofrimento, dano físico ou morte, salvo nas situações admitidas pela legislação vigente;
● Abandonar o animal;
● Obrigar o animal a realizar trabalho excessivo ou superior às suas forças ou submetê-lo a condições ou tratamentos que resultem em sofrimento;
● Criar, manter ou expor animal em recinto desprovido de segurança, limpeza e desinfecção;
● Utilizar animal em confronto ou luta, entre animais da mesma espécie ou de espécies diferentes;
● Provocar envenenamento em animal que resulte ou não em morte;
● Deixar de propiciar morte rápida e indolor a animal cuja eutanásia seja necessária e recomendada por médico veterinário;
● Abusar sexualmente de animal;
● Promover distúrbio psicológico e comportamental em animal;
● Outras ações ou omissões atestadas por médico veterinário
É interessante que façamos as seguintes observações sobre estas condutas acima listadas:
1. O conceito de maus tratos envolve não apenas a violência física, como também as ações que causem danos à integridade mental dos animais;
2. Neste sentido, a norma determina que configura maus tratos a ação de se promover distúrbio psicológico e comportamental no animal.
3. As possíveis condutas que podem ser classificadas como maus tratos não se limitam a estas listadas pela norma. Observa-se que, após referida lista, a Lei nº 22.231/16 determina, de forma bem genérica, que também serão consideradas como maus tratos “outras ações ou omissões atestadas por médico veterinário”. Portanto, um médico veterinário poderá atestar e assim classificar como maus tratos qualquer outra conduta praticada contra o animal que tenha como consequência “atentar contra a saúde ou a integridade física ou mental de animal” (conforme conceito definido para os maus tratos).
4. Inclusive, vale ressaltar que esta lei obriga que os responsáveis por estabelecimentos de atendimento veterinário notifiquem a à Polícia Civil de Minas Gerais os casos em que forem constatados indícios de maus tratos contra os animais. Desta forma, os médicos veterinários podem não apenas atestar outras formas de maus tratos não listados na norma, como estão, na verdade, obrigados a notificar a Polícia Civil quando constatarem a ocorrência de qualquer forma de maus tratos aos animais. A Polícia Civil será, portanto, a responsável por investigar a infração.
Em âmbito municipal (Belo Horizonte), a Lei nº 8.565/03, que “Dispõe sobre o controle da população de cães e gatos e dá outras providências” fornece o seguinte conceito para os maus tratos.
“a ação cruel contra o animal, especialmente ausência de alimentação mínima, tortura, submissão a experiências pseudocientíficas” (Art. 4º, inciso VIII).
E, no caso especificamente de cães e gatos, a norma também elenca condutas que se enquadram como maus tratos. Algumas são bem similares àquelas presentes na lei estadual acima comentada, mas há outras que merecem destaque, quais sejam:
● Colocação em local impróprio a movimentação e a descanso, sem luz solar, alimentação, hidratação e oxigenação adequados;
Neste caso, a lei preocupou-se em detalhar o que seria um local impróprio para a movimentação e descanso do animal.
● Castigo, ainda que para aprendizagem ou adestramento;
Interessante notar que, neste caso, há uma preocupação com a saúde mental dos gatos e cães, os quais podem ficar traumatizados com o castigo imposto.
● Transporte em veículo ou gaiola inadequados ao seu bem-estar;
Trata-se de conduta não citada na lei estadual e que merece destaque, já que o transporte correto é de fundamental importância para a segurança, saúde e bem-estar dos animais.
● Abate para consumo;
Abater cães e gatos para consumo próprio, apesar de ser, por óbvio, uma prática aviltante e absurda, deve ser prevista de forma específica em norma legal, a nosso ver, para conferir maior segurança jurídica e garantir a devida punição para tal conduta.
● Falta de assistência veterinária.
É também interessante que haja a descrição específica para esta conduta na norma, de forma que seja mais fácil garantir a punição a esta infração que pode levar sérios danos à saúde de gatos e cães.
Quais Penalidades Podem ser aplicadas a quem Comete Maus Tratos? Quais normas dispõem sobre este tema?
A origem da punição aos maus tratos está na Constituição Federal de 1988, a qual estabelece que incube ao Poder Público proteger a fauna, devendo vedar, através de leis específicas, as práticas que submetam os animais à crueldade (inciso VII, §1º do artigo 225).
Vale destacar que o ex-ministro do STF Carlos Velloso afirmou em seu voto (na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1856/RJ) que esta proteção dada pela Constituição abrange tanto os animais silvestres como os domésticos ou domesticados (já que estes também são abrangidos pelo conceito genérico de “fauna”). Segundo o ministro, a Constituição Federal protege todos os animais, sem exceção. Embora o voto do ministro neste processo específico tenha se referido ao contexto dos galos e respectivas rinhas, podemos inferir que os gatos também estão abrangidos pela proteção da Constituição Federal.
A conduta que é definida como crime está prevista na Lei federal nº 9.605/98 (a famosa “Lei dos Crimes Ambientais”), que a descreve como “Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”.
Em 2020, esta lei federal foi alterada pela Lei nº 14.064, a qual tratou especificamente de quem praticar maus tratos a gatos e cães, aumentando a pena de prisão e estabelecendo a penalidade de perda da guarda do animal.
Portanto, as penas que podem ser aplicadas a quem pratica maus tratos são as seguintes:
● Prisão
No caso especificamente dos gatos e cães, a pena de prisão é maior, podendo variar entre 2 e 5 anos de reclusão.
Para demais animais domésticos, domesticados ou mesmo silvestres, a pena é de detenção entre 3 meses e 1 ano.
● Multa
● Proibição de Continuar com a Guarda do Animal
Esta última penalidade também será aplicada apenas a tutores ou criadores de cães e gatos.
● E, havendo morte do animal que foi vítima de maus tratos (seja ele doméstico, domesticado ou silvestre), a pena será aumentada entre um sexto e um terço.
Ademais, a capital mineira também regulamentou esta matéria através da Lei Municipal nº 8.565/03, que “Dispõe sobre o controle da população de cães e gatos e dá outras providências”.
Esta importante lei estabelece os seguintes procedimentos que o órgão da Prefeitura Municipal irá adotar caso o agente sanitário constate a prática de maus tratos contra gatos ou cães:
1. Inicialmente, o funcionário da Prefeitura irá orientar e intimar o “proprietário” (a norma utiliza este termo) ou preposto (funcionário do proprietário ou responsável por cuidar do animal) para que as irregularidades constatadas sejam sanadas dentro dos seguintes prazos:
a) imediatamente;
b) em 7 dias;
c) em 15 dias;
d) em 30 dias.
Um exemplo de irregularidade que poderia ser sanada dentro de determinado prazo e que configura maus tratos seria disponibilizar ao animal um recinto desprovido de segurança, limpeza e desinfecção. O prazo de adequação é definido pelo agente sanitário conforme o caso concreto.
2. Caso a irregularidade constatada não seja sanada dentro do prazo definido pelo agente sanitário, será aplicada a multa prevista no Decreto federal nº 6.514/08, o qual em seu artigo 29 determina que constitui infração “Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. O valor da multa irá variar entre R$ 500 e R$ 3.000, por indivíduo (ou seja, por animal vítima de maus-tratos).
3. No caso de reincidência, serão aplicadas as penalidades de multa em dobro e perda da posse do animal.
4. Após aplicar a penalidade, o agente sanitário da Prefeitura deverá comunicar a ocorrência dos maus tratos ao órgão ambiental municipal integrante do Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA (em Belo Horizonte, o COMAM – Conselho Municipal de Meio Ambiente), para que ele providencie ainda a aplicação da penalidade prevista na Lei federal 9.605/98. Vale ressaltar que um órgão ambiental não pode aplicar uma penalidade de natureza penal (como uma prisão) prevista na Lei de Crimes Ambientais, pois um órgão da Administração Pública não tem poderes para aplicar uma penalidade de natureza penal (órgãos ambientais podem apenas aplicar penalidades de natureza administrativa, tais como multa, embargo de obra, demolição, advertência, suspensão parcial ou total de atividades etc); mas o órgão ambiental poderá encaminhar uma comunicação ao Ministério Público, o qual, avaliando o caso, poderá interpor uma ação penal contra o infrator. Portanto, é apenas o Ministério Público quem poderá aplicar as penalidades de natureza penal previstas na Lei de Crimes Ambientais.
Por fim, esta lei municipal ainda determina em seu artigo 23, inciso II, que será apreendido o animal que tenha sido submetido aos maus tratos.
O animal apreendido, salvo em caso de maus-tratos graves, ficará à disposição do proprietário ou de seu representante legal no CCZ – Centro de Controle de Zoonoses da Divisão de Vigilância Sanitária do Departamento de Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte.
Observa-se que, em casos mais graves, o proprietário não poderá resgatar o seu gato ou cão apreendido.
O animal deverá ser resgatado dentro dos prazos de 7, 15 ou 30 dias, conforme determinação do agente sanitário. Caso não seja resgatado dentro do prazo determinado, o agente sanitário poderá, a seu critério:
● Encaminhar o gato ou cão para a adoção;
● Proceder à eutanásia nos seguintes casos:
a) doença transmissível e incurável, não transmissível e incurável, ferimento grave, clinicamente comprometido;
b) animal não adotado.
Em qualquer uma destas duas hipóteses a eutanásia apenas poderá ser feita por decisão do médico veterinário do órgão municipal responsável, amparada em avaliação e parecer técnico.
Quais são as Obrigações dos tutores de gatos?
Em Belo Horizonte, Lei Municipal nº 8.565/03, que “Dispõe sobre o controle da população de cães e gatos e dá outras providências” cria as seguintes obrigações a tutores (denominados como proprietários) e estabelecimentos veterinários, com relação aos cães e gatos:
- Registrá-los no órgão municipal responsável ou em estabelecimento veterinário conveniado por este órgão.
O registro deve ser efetuado entre o terceiro e o sexto mês de idade. E, caso não seja feito dentro deste prazo, o agente sanitário do órgão municipal emitirá uma intimação para que o proprietário proceda ao registro do(s) seu(s) animal(is) dentro do prazo de 30 dias. Descumprido este prazo, o proprietário receberá uma multa de R$ 200,00 por animal não registrado.
Ainda conforme a mesma lei municipal, efetuado o registro, será emitida uma carteira timbrada, que conterá o número do Registro Geral do Animal – RGA (espécie de carteira de identidade animal), e ainda o nome do animal, sexo, raça, cor, data de nascimento real ou presumida, nome do proprietário, RG e CPF, endereço completo e telefone e data da expedição.
A identificação do gato será feita por chip ou plaqueta com número correspondente ao do RGA, que será fixada na coleira do animal. - Mantê-los em condições adequadas de alojamento*, alimentação, saúde, higiene e bem-estar, e responsabilizar-se pela destinação adequada dos dejetos.
- As condições de alojamento deverão impedir que o animal fuja ou agrida terceiro ou outro animal.
Desrespeitadas, tais condições, o proprietário será intimado a regularizá-las dentro do prazo de 30 dias, o qual, se descumprido, ensejará multa no valor de R$ 500,00. Em caso de reincidência, a multa é acrescida em 50%.
- Ser responsável pelos danos causados por seu animal
A referida lei municipal de Belo Horizonte determina que o proprietário ou responsável pela guarda do gato é responsável pelo dano por ele provocado, exceto quando houver violação de propriedade. Logo, se alguém invade a residência do dono do gato e este vier a causar danos físicos ao invasor, o proprietário não poderá ser responsabilizado.
No mesmo sentido, conforme já destacamos, o Código Civil Brasileiro estabelece em seu artigo 936 que “O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”. - Vacinar seu gato contra raiva, observado o prazo para a revacinação anual
Tanto o comprovante de vacinação fornecido pelo órgão municipal responsável, como a carteira emitida por veterinário particular poderão ser utilizados para comprovação da vacinação anual. - Em caso de morte do animal, dispor do cadáver de forma adequada ou encaminhá-lo ao serviço municipal competente.
- A venda do animal em um estabelecimento comercial está obrigada a possuir autorização do órgão municipal responsável (normalmente, a Vigilância Sanitária Municipal) e a presença de veterinário.
- A lei proíbe o abandono do animal em logradouro público e privado, sob pena de multa de R$ 100,00.
Quais obrigações devem ser atendidas por quem vende gatos?
A Lei estadual (MG) nº 21.970, de 15/01/2016, “Dispõe sobre a proteção, a identificação e o controle populacional de cães e gatos” e cria as seguintes obrigações a quem comercializa os gatos:
● Providenciar a identificação do animal antes da venda;
● Atestar a procedência, a espécie, a raça, o sexo e a idade real ou estimada dos animais;
● Comercializar somente animais devidamente imunizados e desverminados, considerando-se o protocolo específico para a espécie comercializada;
● Disponibilizar a carteira de imunização emitida por médico-veterinário, na forma da legislação pertinente;
● Fornecer ao adquirente do animal orientação quanto aos princípios da tutela responsável e cuidados com o animal, visando a atender às suas necessidades físicas, psicológicas e ambientais.
● Possuir Licença do Poder Público municipal para a comercialização dos animais, conforme determina o Código de Saúde de Minas Gerais (Lei estadual nº 13.317/99) no parágrafo único de seu artigo 40, cuja redação foi determinada justamente pela Lei estadual 21.970/16 (ademais, conforme exposto, a legislação municipal também exige tal documento, através da a já comentada Lei Municipal nº 8.565/03).
E, obviamente, quem vende os animais deverá garantir o seu bem-estar, atendendo às cinco liberdades dos animais, além de adquiri-los de criadores idôneos e que atendam à legislação em vigor.
Conclusão
Combater hábitos arraigados culturalmente, fruto de uma sociedade extremamente consumista é uma árdua tarefa. Ainda mais se levarmos em conta que se associa ainda à venda de pets fortes interesses econômicos, responsáveis por reforçar o tratamento dos animais como meras fontes de renda.
Gateiros e tutores lutam para disseminarem uma nova cultura, que insira a ideia de que gatos não são mercadorias, e que demonstre a importância de se doar e adotá-los, principalmente, aqueles que são abandonados.
A legislação caminha a passos lentos, mas caminha. As leis devem não apenas estabelecer normas e punições, mas também serem coerentes e refletirem as ideias e cultura vigentes à época de sua publicação.
Neste sentido, verifica-se o quanto o Código Civil Brasileiro vigente encontra-se desalinhado com os novos valores culturais que visam a tratar os animais como seres sencientes e sujeitos de direitos. Vale destacar ainda que, em setembro de 2023, o Senado Federal criou uma Comissão de Juristas a fim de apresentar uma proposta para a revisão e atualização do atual Código Civil.
De qualquer forma, há avanços para serem comemorados, a exemplo da Lei mineira (Lei nº 23.724/20), a qual, à frente do legislador federal, já estabeleceu, em suma, que os animais: a) são seres sencientes; b) sujeitos de direitos; c) devem gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação e; d) veda o seu tratamento como coisa.
Um avanço ainda maior e disruptivo seria, a nosso ver, a proibição de que os animais domésticos sejam vendidos, mas, tendo em vista os fortes interesses econômicos envolvidos, acreditamos que ainda estamos um pouco distantes desta conquista.
Mas, conforme exposto, há que reconhecermos que avanços vêm sendo conquistados.
E, gateiros, tutores e ONGs certamente continuarão travando a luta em defesa do bem-estar dos gatos e demais animais domésticos.